Formação de impostoras: sabotagem desde a escola ao primeiro emprego

“Eu tenho uma amiga que vive brincando, dizendo que impostora é uma quinta-feira de manhã, uma coisa cotidiana, você está tomando café e fala ‘meu Deus do céu, não sou capaz, o que estou fazendo, por que as pessoas me aplaudem, elas estão completamente foras de si’”, reflete Carolina Gouveia.

“Percebi que o fato de sempre ter sido uma aluna bolsista me afetou bastante, porque eu não podia ter nota baixa. Sempre fui muito estudiosa e mesmo assim achava que não iria conseguir, fazia muitas promessas, e não é que podia ser nove e meio, tinha que ser dez e eu prometia que ia ficar tanto tempo sem comer algo ou sem fazer uma coisa, umas loucuras que vinham muito disso, de eu achar que não era capaz. Quando eu tirava nota boa parecia que era por causa da promessa e não por conta do meu estudo”, completa a publicitária e estudante de pedagogia.

A profissional de ensino faz terapia desde 2019 e descobriu que poderia ter síndrome da impostora quando se deparou com um post no Instagram sobre o assunto, baseado em uma matéria sobre mulheres CEOs que, apesar do grande sucesso, não confiavam em si. A graduanda em pedagogia trouxe o tema para debate na terapia e foi surpreendida com a resposta de que sim, também era seu caso. 

Desde então, Carolina fala com a psicóloga sobre o fato de não se sentir suficiente e refutar elogios, principalmente no atual trabalho, mas percebe que os sintomas que sente com tanta intensidade começaram lá atrás, quando tinha seis anos e começou a ser comparada na escola por conta de sua caligrafia “não ser tão bonita como as de outras meninas”.

A cobrança não se resumiu à sua escrita e se transformou em uma pressão para tirar sempre as maiores notas, já que como era bolsista, sua família temia que a qualquer momento ela perdesse a oportunidade de estudar no ensino privado.

“Tive bolsa durante toda minha vida, na escolinha, ensino fundamental, médio, faculdade… Sempre bolsista, convivendo com a pressão de que, caso perdesse a bolsa, meus pais não conseguiriam pagar. E existem outras questões, a primeira de me encaixar, porque o lembrete sobre a classe social era muito forte, estava sempre em uma posição de inferioridade”.

A sensação de que uma “fraude” pode ser descoberta a qualquer momento é bem comum entre as chamadas “impostoras”, e segundo o artigo “Impostor phenomenon: An internal barrier to empowerment and achievement” (em tradução literal: “O fenômeno impostor: uma barreira interna para capacitação e realização”), existe um ciclo de sofrimento que é experienciado por Carolina e diversas mulheres.

O texto foi realizado a partir das pesquisas da psicóloga Pauline Rose Clance, uma das responsáveis por cunhar o termo “fenômeno do impostor” na década de 1970, em parceria com a também pesquisadora na área de psicologia Maureen O’Toole. 

As doutoras afirmam que mulheres com esse fenômeno da mente se preparam além do esperado diante de qualquer tarefa ou prova, já que sentem o tempo todo que não são capazes de atingir êxito. Após muito esforço, ansiedade, mal estar, pesadelos e diversos outros sintomas, elas atingem sucesso, mas não se dão o crédito pelo resultado, como se a felicidade fosse sempre algo a ser evitado e fatores externos estivessem mais relacionados à conquista. E, quando ocorre um retorno negativo, então o feedback é realmente levado a sério.

O papel do racismo na autossabotagem

Flavia Campos iniciou a terapia aos 18 anos, depois de viver um relacionamento abusivo e perceber que precisava se conectar novamente consigo mesma. “Estava chegando ao nível de ter crise de ansiedade de me arranhar. Já são quase dois anos e até hoje eu tento entender junto com a terapeuta como se manifesta e de onde vem tudo que ronda essa síndrome da impostora”.

A estudante de relações públicas afirma que esses sintomas de ansiedade começaram quando mudou de escola, após o fim da educação infantil, momento em que deixou o ensino público e ingressou em uma escola privada. Flavia pontua que além da mudança que qualquer transferência escolar carrega, ela ainda precisou lidar com uma sala de aula menos diversa.

“Tinha uma grande diferença racial, que é uma parte que me pegava com mais peso. Na minha família nunca foi uma questão de não ter essa consciência, então desde muito pequena eu tinha noção do porquê de eu ter que ser sempre a melhor, o porquê da sociedade não dar as mesmas oportunidades. Isso sempre foi uma coisa muito dita pra mim, e agora, com 20 anos, compreendo que foram uma série de gatilhos sendo inseridos dentro de mim”.

“Eu fui crescendo nesse meio, então pensa, você é única pessoa preta do corredor, escuta dentro de casa que precisa ser a melhor de todas para conseguir se dar bem, e eu tinha muitos professores racistas, não me davam nota porque realmente não queriam. Durante as provas, as salas eram divididas por nota – e isso é muito ruim. Eu me matava de estudar, lembro de ficar até tarde na escola, fazia de tudo e não surtia efeito nas minhas notas”, relata Flavia.

“Acho que nessa época da escola a gente acredita que tem que ser bom em tudo, caso contrário, não vamos passar em nenhum vestibular. Os professores falavam isso, como por exemplo: ‘se você tirar menos que seis na minha prova você é burro’. Falavam mesmo, desse jeito. Acho que era um abuso psicológico com os alunos, eram micro agressões verbais. Toda escola que eu passava tinha esse tipo de coisa”. 

A estudante conta que quando os vestibulares se aproximaram, suas inseguranças ficaram ainda mais intensas e a síndrome da impostora – este ciclo de ansiedade que enfrentava todos os dias no colégio – começou a se agravar ainda mais, o que lhe causou queda capilar.

Segundo as doutoras O’Toole e Clance, o pavor da falha, medo de avaliação, introspecção e a falta de reconhecimento de múltiplas formas de inteligência são alguns dos fatores que favorecem este fenômeno da mente, somados a fatores sociais. Mas quais seriam eles? Para Flavia a questão central é que o ambiente de agressões verbais e racismo lhe levou a ter maior dificuldade em se ver no mercado de trabalho.

“Acho que ser uma pessoa de grupos minoritários acaba trazendo um impacto três vezes maior, porque você não se enxerga naquele lugar e ainda existem uma série de coisas e pessoas que te dão provas de que você não deveria estar lá. Uma série de inseguranças começam a surgir e vão te sabotando”, pontua. “Hoje, depois de muita terapia, eu consigo perceber que foram pontos que me trouxeram muita insegurança para o meu lado profissional e acadêmico. Às vezes acontece, por exemplo, de haver uma vaga que tem tudo a ver com o que eu gosto e eu com o que eu já fiz, só que como é uma empresa muito grande, fico com receio de não passar no processo seletivo”.

Escolas que incentivam o ciclo impostor

Quem também optou pelo curso de relações públicas foi Alice, a qual preferiu se identificar nessa matéria por um nome fictício para preservar sua identidade. A carreira acabou sendo uma escolha definida só depois de prestar as provas, porque o ambiente escolar lhe fez acreditar que não era capaz de passar em qualquer vestibular, então a matrícula acabou sendo inesperada e decidida com rapidez.

Hoje, no fim do curso, ela está determinada a pegar seu diploma e fazer o que realmente quer: ser atriz. Mas o caminho que percorreu para perceber que era isso que desejava foi custoso. “Era um senso comum entre meus amigos que eu era incompetente – o que acho muito louco, porque como você vai ser amiga de uma pessoa que te acha burra – mas entre os professores não era dito de maneira completamente aberta. Porém, aconteciam coisas como: logo após me dar uma prova com a nota três, o professor dizia para todos que ninguém passaria em nada”, afirma Alice fazendo referência aos vestibulares.

“Em um período de doze anos na minha escola, dois suicídios aconteceram. Era uma questão bem comum no colégio por conta da pressão”.

Alice

“Nessa época eu já tinha transtorno de ansiedade, descobri um ano depois na terapia, então ficava muito nervosa para fazer as provas, mas ao mesmo tempo me colocaram tanto esse pensamento de que eu não iria passar em faculdade nenhuma que eu meio que me desliguei e achava que iria para o cursinho”, reflete.

“Prestei para relações internacionais, marketing, história… Acabei passando em todos os cursos, mas era deprimente ver as pessoas empolgadas com o fato de ir para a faculdade. Eu não vivi isso porque me fizeram acreditar que eu não conseguiria, pelo menos não tão rápido”.

Mais do que um “medo” do primeiro emprego

Apesar de tantos sintomas nesse período, a futura atriz só descobriu a síndrome da impostora mais tarde, quando estava ingressando no mercado de trabalho. “Na terapia a gente trata o fato de eu não precisar pensar toda semana que vou ser demitida. Faz um ano. O diagnóstico veio enquanto eu estava trabalhando em um lugar onde acredito que acontecia muito abuso psicológico. Não tinha uma razão sólida para achar que eu seria mandada embora, no fundo eu sabia que meu trabalho era bom, mas, emocionalmente não tenho segurança de que as coisas estão perfeitas”.

Rory O’Brien e Tricia J. Yurak escreveram no artigo “The phenomenology of the impostor phenomenon” (em tradução literal: “A fenomenologia do fenômeno do impostor”) que os primeiros empregos são “prime time” para a síndrome da impostora, um trocadilho com a expressão em inglês para “horário nobre”. Entretanto, para muitas mulheres como Alice, não se trata apenas do receio de errar. A universitária atuou em um ambiente majoritariamente masculino, onde não só era ignorada, como já teve ideias – que geraram lucro – apropriadas por homens em cargos superiores.

“Assumir que aconteceu é muito complicado, falar ‘eu realmente estou passando por isso e é simplesmente porque eu sou mulher, não é porque meu trabalho é ruim ou porque eu tenho uma personalidade difícil, é só por conta do meu gênero’. Na prática é muito difícil entender isso”.

A misoginia não é o único fator para diversas mulheres que estão no mercado de trabalho. Flavia afirma que já passou por empregos em que houve diferença de tratamento por ser mulher e preta. “Essa situação me fez duvidar ainda mais de mim mesma, então, quando aparece uma pessoa que não tem as minhas características, sinto que o meu trabalho pode ser substituído. Isso me dá muita ansiedade, tenho essa pressão interna de ter que estar sempre produzindo muito e bem”.

No artigo “The impostor phenomenon: recent research findings regarding dynamics, personality and family patterns and their implications for treatment” (em tradução livre: “O fenômeno do impostor: descobertas recentes sobre dinâmicas, personalidade e padrões familiares – implicações no tratamento”), feito em parceria com Joe Langford, a Dra Clance chega a adicionar na lista de traços propícios para a síndrome da impostora a necessidade de se parecer mais inteligente do que os outros.

A questão, entretanto, é: por que as mulheres sentem a necessidade de se provarem melhores? Por que a educação não incentivou Alice, Carolina e Flavia a sentirem que são capazes, ou melhor, suficientes? A síndrome da impostora não é um fenômeno da mente que nasceu com essas garotas, ser impostora é um sintoma de uma sociedade que não estimula crianças, principalmente as do sexo feminino, a sentirem que são geniais ou compreenderem as múltiplas formas de inteligência e suas respectivas aptidões.


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Gabriela Sartorato e Laura Ferrazzano

Jornalistas concluindo a graduação através de um projeto sobre como a Síndrome da Impostora se manifesta na vida das mulheres.