Síndrome da impostora ao burnout: o ápice da sabotagem

O “fenômeno do impostor” é o termo cunhado pelas psicólogas Pauline Rose Clance e Suzanne Imes em 1978, as quais defendiam que apenas mulheres poderiam desenvolver este fenômeno da mente. A tese foi confrontada por diversos estudos internacionais, os quais descobriram que, nas mais diversas situações, ambos os gêneros poderiam apresentar os sentimentos de auto boicote. No entanto, alguns estudos apontam para o fato de a “síndrome do impostor”, nome popular deste fenômeno da mente, é mais frequente e incidente no sexo feminino (Robinson and Goodpaster, 2000; Thompson, 2004; Kumar e Jagacinski, 2006).

Após os novos estudos, ambas as pesquisadoras escreveram artigos falando sobre como este fenômeno da mente se manifesta em homens e mulheres, principalmente entre pessoas com quadros de ansiedade. Contudo, a tese das doutoras segue sendo de que este sentimento de “fraude” é comum entre mulheres, visto que diversos aspectos em nossa sociedade contribuem para a desigualdade de gênero, especialmente no mercado de trabalho – comprovada em dados sobre salário e horas de trabalho, por exemplo.

(Fonte: Fenômeno do impostor: uma barreira interna para empoderamento e realização/Dras. Clance e O’Toole, 1988).

A sensação de insuficiência não é o único sintoma da autossabotagem, que também pode levar à uma exaustão excessiva, níveis cada vez mais intensos de ansiedade e estresse, depressão e entre outros sintomas. Como ser impostora pode estar diretamente conectado a uma necessidade de sobrecarga da rotina, a qual ocorre devido a questões financeiras ou busca por validação no mercado, muitas mulheres acabam desenvolvendo um quadro de burnout. 

O que é o burnout?

O termo em inglês remete à combustão total, ou seja, quando o processo de queima possui oxigênio suficiente para consumir todo o combustível, então não há produção de fuligem ou monóxido de carbono. A palavra serviu como metáfora para o psicanalista americano Herbert Freudenberger em 1974, quando cunhou o termo para descrever uma série de sintomas de esgotamento máximo específicos naqueles que frequentavam o ambiente laboral.

De acordo com o médico cardiologista Hudson França em seu artigo para a Revista Brasileira de Medicina, publicado em 1987, o burnout é gerado por uma quebra de harmonia nas esferas somática, intelectual e emocional. Freudenberger, em seu livro “L’épuisement professionnel: la brûlure interne” (em tradução livre: “Burnout: a queima interna”), descreve os indivíduos que costumam ser afetados pelo quadro como autossuficientes e acostumados a esconder fraquezas, o que torna difícil a identificação precoce do quadro, que se inicia de maneira lenta e progressiva.

O artigo “The measurement of experienced burnout” (em tradução livre: “A medição da experiência de burnout”), publicado em 1981 pelas pesquisadoras Christina Maslach e Susan Jackson, descreve três estágios da doença. O nível de desgaste ou exaustão emocional se caracteriza pela perda de energia, esgotamento e fadiga constante. A despersonalização é o estágio que engloba intensificação da ansiedade, irritabilidade e pensamentos negativos, egoístas, que podem levar ao isolamento. Já o estágio de falta de realização pessoal traz baixa produtividade e autoestima, depressão e redução significativa de relações interpessoais.

A decisão de incluir o burnout na Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS) só foi tomada em 2019 e será oficializada em janeiro de 2022, porém, a pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) de 2019 indica que o burnout afeta cerca de 20 milhões de brasileiros. Entre 2013 e 2014, a filial nacional da International Stress Management Association (Isma) avaliou mil pessoas de 20 a 60 anos no país. Neste grupo, 30% possuíam o grau máximo de burnout.

Sheryl Sandberg, diretora do Facebook, e Adam Grant, professor de administração da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, analisaram 183 estudos sobre diferenças de gênero e burnout em 15 países. Em artigo publicado em fevereiro de 2019 na coluna que eles dividem no New York Times, os autores afirmam que em um grupo de mil profissionais com burnout, cerca de 54% serão do gênero feminino.

Por que mulheres têm mais chances de desenvolver burnout?

“Nenhum homem é ensinado a olhar para todos os lados checando se as pessoas estão realmente gostando do que eles estão fazendo. A pressão social é totalmente diferente, uma consequência do sistema em que vivemos. Eu queria ter metade da segurança dos meus amigos. Eles não têm medo de abrir a boca no meio da reunião e falar sem querer uma besteira”, diz a aluna de relações internacionais, Letícia, que preferiu usar um nome fictício nessa matéria para preservar sua identidade. A jovem lida com seus pensamentos da síndrome da impostora e efeitos colaterais do quadro de burnout. 

“No início da pandemia, virei uma máquina, porque eu não tinha mais o tempo do transporte, então ‘precisava’ render. Peguei muitas matérias da faculdade para adiantar e em junho de 2020 já estava esgotada. Comecei a ter alergias na mão e não era por ressecamento – fui em três dermatologistas -, só entendi o que estava acontecendo durante uma consulta com uma psiquiatra que me diagnosticou com sintomas físicos de ansiedade”, relata. 

“Tive essa conversa, sobre síndrome da impostora, com a minha psicóloga, que é psicanalista. Ela disse que era um padrão meu de me achar deslocada. Chegou em um ponto, durante o estágio, que estava com medo, não conseguia entrar nas ligações porque me sentia extremamente mal, todo mundo parecia ser incrível e eu não me sentia da mesma forma”.

O burnout de Letícia ocorreu no início do segundo semestre de 2020, devido à cobrança extrema por produtividade. “Levantei um dia e percebi que não tinha cabeça para ligar o computador ou fazer qualquer outra coisa. Pedi licença médica, não tinha o que fazer, e então me indicaram uma psiquiatra. Ela me passou um ansiolítico e explicou: ‘Olha, você teve um burnout, não é tão comum na sua idade, mas é normal, comece a praticar exercícios e tome esse remédio’. Eu tenho feito isso desde então”.

Letícia conta que apesar de seu constante esforço acadêmico – que lhe renderam vários prêmios no colégio – foi criada com valores mais conservadores. “Essa questão da ‘feminilidade‘ foi imposta para mim. Eu lembro que queria fazer judô, meu pai até incentivou, mas não tive a oportunidade de fazer porque a minha mãe me colocou no balé. Então, eu acho que houve uma cobrança mais social. ‘Faça balé, aprenda a cozinhar, para depois crescer e ser uma mulher casada e decente’. É bem vanguardista esse pensamento, mas acho que é o que acontece com a maioria de nós, né?!”.

A estudante acredita que sua cobrança excessiva por produtividade vem de uma necessidade de validação que a terapia ainda não conseguiu explicar, porém, percebe que as conquistas que alcançava no colégio lhe davam um sinal de que estava no caminho correto.

Diante da concorrência e individualismo da vida adulta, na universidade e mercado de trabalho ela não consegue obter essa validação, portanto, começou a se cobrar cada vez mais, com a falsa sensação de que conseguiria se sentir mais suficiente por meio da sobrecarga. A consequência desse ciclo impostor foi o burnout.

“Na escola eu tinha meus troféus, eles não significavam nada, mas eram uma validação. Sinto que nós, mulheres, estamos o tempo todo precisando disso, porque se alguém não me falar que isso aqui está bom, fico insegura. Também acho que as escolas estão muito preocupadas com ranking, preparação e resultados de vestibular para serem as melhores da região, acabam deixando de lado uma preocupação com você”, pontua. 

“Na faculdade não tem essa de prêmios ou cobranças, então se você mata aula o problema é seu, mas se você tira a melhor nota não haverá nada de especial nisso. No trabalho até tem um pouco disso das condecorações, entretanto, se você trabalha com muitos profissionais bons… A minha tendência é ficar extremamente ansiosa com isso, fico com a sensação de que eu não sou capaz de fazer o que as outras pessoas estão fazendo”

Letícia

Apesar de comum, o burnout ainda não está no repertório de diversos profissionais da saúde

Joana, que também optou pelo uso de um nome fictício, afirma que sente a mesma sensação o tempo todo. Após muito estudo e ansiedade para os vestibulares, a agora enfermeira foi aprovada no curso de uma faculdade de prestígio, mas como seu nome não estava na primeira lista, nunca teve vontade de celebrar a conquista – sentia que isso seria um motivo para não merecer estar ali. 

Quando finalizou os estudos de graduação, acabou ingressando em uma especialidade que não queria, por questões financeiras, o que lhe levou ao trabalho em pronto-socorro. Entre os plantões de 12 horas, a profissional de saúde lidava constantemente com a sensação de que precisava da aprovação de colegas antes de prosseguir com o atendimento.

Exausta, ela se candidatou, mesmo que para ganhar um salário menor, em uma vaga de professora. Tratava-se de uma universidade de influência, mas ela sentia que não estava preparada para lidar com os alunos, mesmo que tivesse conhecimento técnico na área.

Por isso, Joana começou a estudar paralelamente e obteve a licenciatura em enfermagem. No entanto, a ansiedade e mal estar antes das aulas só aumentavam, assim como suas horas de estudo dedicadas mesmo às aulas que já havia dado.

“Comecei a ter uma fobia de estar com os alunos, por mais que eu estivesse sempre estudando para estar preparada nas aulas. Achava que nunca estava bom o suficiente, comecei a não dar conta, e nessa época as crianças eram pequenas, as brigas com o marido também cresciam, porque eu estava sempre irritada com tudo”, relata.

“Como não queria me afastar do trabalho, propus uma troca de função. Entretanto, isso acabou sendo enlouquecedor também, porque eu já estava doente, a demanda era muito grande e eu queria mostrar para todo mundo que conseguia, já que ouvia das pessoas que estava naquilo por tempo limitado, depois seria reavaliado. Então eu sentia que precisava provar o tempo todo que o meu trabalho era bom para poder me manter no cargo”.

Joana pontua que seu trabalho na área da saúde lhe levou à desconfiança de que poderia ter burnout, mas os profissionais que lhe acompanharam antes do ápice não souberam identificar com exatidão.

“Estou fazendo tratamento psiquiátrico e terapia desde 2015, procurei para solucionar o pânico que tinha para dirigir e acabei descobrindo 1 milhão de coisas (risos). Cheguei a pensar que poderia ter depressão pós-parto, já que durante o início da maternidade chorei muito, estava sensível, mas acabei sendo diagnosticada com transtorno misto ansioso e depressivo”, afirma.

“Com o tempo, acabei percebendo que muitas coisas na terapia não estavam se encaixando, eu falava com a psiquiatra sobre o trabalho e essa questão não era realmente levada em consideração.”, disse Joana.

Já o terapeuta da enfermeira mencionava a questão de procurar um trabalho novo, mudar de ramo. “Até pensei em fazer a especialização em obstetrícia, que era meu sonho de antes, mas percebi que a carga horária era muito pesada e eu estava cansada, minhas crianças são pequenas. Resolvi fazer uma faculdade à distância em outra área, mas também não dei conta das demandas”, admite.

“Eu desconfiava que tinha síndrome de burnout, cheguei a questionar alguns profissionais. Hoje percebo que a incompreensão deles deixou essa possibilidade no ar. Como enfermeira, eu tinha conhecimento sobre a síndrome, mas não tinha noção da gravidade”.

O diagnóstico veio apenas há pouco tempo, quando fez uma avaliação com uma psiquiatra que notou como o trabalho era um fator crucial em sua piora. Apesar de também realizar trabalho doméstico e cuidar das duas filhas que ainda estão na pré-escola, Joana também tinha um sintoma físico que só piorava quando estava trabalhando no mercado formal.

“Desde 2013 eu desenvolvi uma espécie de toque, de cutucar o meu braço sempre que eu estava nervosa. Só percebi quando notei úlceras no meu braço. Eu achava que nas férias isso melhorava por causa da praia, a água do mar, o sol que eu tinha tomado… Mas não, só percebi que tinha relação com trabalho em 2016, durante a licença maternidade, porque as feridas haviam melhorado e eu não tinha saído para lugar nenhum. E nessa época eu não estava dormindo, tinha muito trabalho com as crianças”, explica. “Ver o diagnóstico da síndrome de burnout foi um alívio porque eu finalmente teria o tratamento adequado”.


*(Créditos imagem de destaque: Lewis Carroll/Domínio público, marinemynt e Jubjang, Rawpixel).

Gabriela Sartorato e Laura Ferrazzano

Jornalistas concluindo a graduação através de um projeto sobre como a Síndrome da Impostora se manifesta na vida das mulheres.