Impostora da família: como papéis sociais criam um ciclo de sabotagem

“Sempre houve um clima de competição entre eu e a minha irmã mais velha, porque meus pais diziam que ela era mais inteligente. Nada que eu fazia estava bom o suficiente, principalmente para a minha mãe. A comparação é tão grande que até quando ia bem na escola continuava sendo cobrada. Fiz teatro por muito tempo também, participei de várias peças e não lembro dela me parabenizando em nenhuma”, diz Fernanda, a qual preferiu se identificar nessa matéria por um nome fictício para preservar sua identidade.

A universitária de 23 anos conta que quando criança era dispersa. Como amava bater papo na escola, levava algumas reclamações para casa, fator que começou a prejudicar suas notas durante a adolescência.

A família cobrava uma melhora, assim como realização de tarefas domésticas e bom desempenho nos esportes que praticava. Entre os sermões, havia o constante lembrete de que sua irmã era um exemplo a ser seguido.

Fernanda cresceu e ingressou na faculdade de arquitetura, porém, a jovem começou a lidar cada vez mais com uma ansiedade muito forte sempre que precisava realizar um projeto ou falar em público, por exemplo.

“Em todo momento eu acreditava que as coisas que estava fazendo não eram méritos meus, que era uma fraude. Na faculdade, tinha muito medo de dizer para as pessoas alguma coisa, evitava responder perguntas porque acreditava que iriam perceber que eu não era tão inteligente”.

A universitária também trabalha no negócio da família e assumiu uma série de responsabilidades que não tem hora para serem debatidas em casa. Os sintomas de ansiedade foram piorando e quando resolveu procurar auxílio psicológico descobriu que tinha síndrome da impostora e um recente quadro de burnout – um estado de estresse crônico, cujo nome remete ao termo em inglês que significa “combustão completa”.

“Estava tendo várias crises de ansiedade e ataques de pânico. Se eu trabalhasse das 7h às 16h, por exemplo, mesmo às 20h era momento para tratar de trabalho comigo, e quando recusava, era chamada de desinteressada. Minha mente ficava à milhão o dia todo. Para mim foi muito bom entender que era isso que estava acontecendo comigo, não estava entendendo o porquê de tanto estresse.”

Comparação familiar gera autossabotagem

O “fenômeno do impostor” é o termo cunhado pelas psicólogas Pauline Rose Clance e Suzanne Imes em 1978. Apesar de não ser uma patologia, este fenômeno da mente ficou conhecido como “síndrome da impostora”, utilizado no feminino por diversos estudos internacionais para reforçar essa questão de gênero. 

Segundo as pesquisadoras, mais especificamente no artigo “The imposter phenomenon in high achieving women: dynamics and therapeutic intervention” (em tradução livre: “O fenômeno do impostor em mulheres de alto desempenho: dinâmica e intervenção terapêutica”), este não é um sintoma exclusivo do momento em que mulheres se deparam com a competição profissional ou acadêmica. A causa pode estar nas expectativas sociais, mais especificamente, na relação desenvolvida pela paciente durante a infância com a família. 

“Por que tantas mulheres brilhantes, apesar das evidências consistentes e impressionantes, continuam a se ver como impostoras que fingem ser brilhantes, mas que na verdade não são? Quais são as origens, dinâmica e papéis que mantêm tal crença? Observamos que nossas ‘impostoras’ normalmente se enquadram em um de dois grupos, no que diz respeito à história familiar inicial”, escrevem as doutoras Clance e Imes.

(Fonte: Fenômeno do impostor: uma barreira interna para empoderamento e realização/Dras. Clance e O’Toole, 1988).

As psicólogas caracterizam o primeiro grupo como aquele em que sempre há alguém inteligente na família que não pode ser superado. Porém, a impostora tenta o fazer, por meio da escola, mercado de trabalho ou outros campos, embarcando em um ciclo de desgaste por validação que nunca atinge o objetivo final, visto que o familiar que deseja que admita a vitória nunca o faz, seja porque a multiplicidade de inteligências não é reconhecida ou ainda por razões pessoais específicas.

Clance e Imes afirmam ainda que é comum que as impostoras sejam membros da família encaradas como sensíveis ou sociáveis, fazendo com que, aos olhos dos parentes, a característica de inteligência, por exemplo, não possa ser desenvolvida. 

O grande conflito da impostora é que essa imagem social não pode ser mudada, contudo, ela se divide entre acreditar nesse mito familiar e provar que ele pode ser refutado, gerando um sentimento recorrente de que, no fundo, a derrota em se provar inteligente é fruto de sua incapacidade.

Diante deste conflito interno, começam a surgir sentimentos de dúvidas mesmo diante de conquistas, as quais começam a ser creditadas à sensibilidade de outras pessoas, habilidades sociais, charme “feminino”, sorte e quaisquer outros fatores que não sejam o próprio mérito.

A comparação nem sempre é incentivada pela família – mas mesmo assim pode existir

Paula, que também optou por um nome fictício, nunca notou um membro de sua família lhe comparando com os irmãos mais velhos, porém, sempre sentiu que era esperado dela ter tanto sucesso como eles, uma jornada que nunca parecia ser alcançada.

“Admiro muito meus irmãos, tudo que eles fazem. Em questão de vestibular, por exemplo, meu irmão passou em faculdades de medicina federais e toda a minha família o idolatra. O meu outro irmão foi estudar em Coimbra. Então, sempre me perguntava o que poderia fazer para que os meus pais pudessem dizer: ‘a Paula fez isso!’. Nunca consegui chegar em uma conclusão, e na minha cabeça, eu só fazia besteira, nada dava certo, nada comparado a eles”.

Hoje, a estudante cursa direito, mas por um bom tempo tentou medicina, como um dos irmãos, e conta que seu período pré-vestibular foi de muita sabotagem.

“Neste momento também estava passando por um relacionamento muito abusivo, a pessoa que estava do meu lado me falava que eu não conseguiria, então acabei chegando à conclusão de que realmente não tinha capacidade. Corri atrás de coisas que no fundo nem queria. As pessoas me diziam: ‘Paula, para de se sabotar, você estuda e tem capacidade de conseguir, mas quando chega na hora, fica paralisada diante das coisas’, e era isso que realmente acontecia”.

A futura advogada afirma que mesmo depois do fim dos vestibulares, ainda sente necessidade de se preparar muito para absolutamente tudo e não vive o êxtase de conquistas.

“Para mim é obrigação. Por exemplo, faço uma prova e acabo indo mal, na minha cabeça o pensamento é de que sou burra, péssima, que não tenho competência para nada. Se realizo uma prova e vou bem, a sensação é de que eu cumpri a minha obrigação, fiz o mínimo. É isso o tempo todo, é desgastante”.

A cobrança pela perfeição pode ter outras origens

Para Ana Ferrari, estudante de jornalismo, nunca houve uma sensação de que algum parente fosse superior a ela, o que lhe enquadra no segundo grupo caracterizado por Clance e Imes.

Neste caso, a família acredita que ela tem capacidade de se mostrar extremamente inteligente e capaz em tudo que desejar, crença que é reforçada constantemente pelo fato de essas crianças demonstrarem aptidões desde pequenas, mesmo que seja falar e ler antes do esperado. 

Em certo momento a menina deixa esse ambiente de “certezas” sobre suas capacidades e passa a se deparar com alguns desafios, como em uma matéria específica na escola ou colegas que sejam tão inteligentes como ela. Neste momento, as psicólogas afirmam que se inicia o ciclo de esforço excessivo e pavor de falha, causados por um medo de que a família descubra que a perfeição na qual acreditam não existe.

“Acho que sempre foi uma cobrança minha, mas também preciso dizer que ficava muito tempo com minha avó, ela é ansiosa, de uma forma inconsciente, e falava o tempo todo sobre estudar, que eu tinha que ir bem. Não acho que havia intenção de me colocar pressão, era só uma maneira de incentivar que eu corresse atrás das coisas que eu queria, mas acredito que de certa forma isso teve um efeito psicológico que eu não percebi no período”, relata.

“Minha mãe também… Não era uma coisa que fazia por querer, ela teve uma infância difícil e trabalhou muito, então me passava um pouco sobre o que viveu. Mas da minha família sempre tive muito apoio”.

Como nem tudo pode ser separado em apenas dois grupos para que uma definição exata seja traçada, o caso de Ana envolve mais questões. “Eu tinha um certo medo de falhar, de ser igual ao meu pai – acho que todo mundo que tem um pai disfuncional deve sentir um pouco disso”, reflete.

“Durante o ensino médio, um ‘amigo’ me colocava muita ‘noia’, sobre vários aspectos. No segundo ano ele vivia me dizendo que eu fazia coisas por repetição, por exemplo, que a minha forma de estudar não me fazia de fato aprender as coisas, apenas decorava, e isso ficou muito forte na minha cabeça. Só agora, nestes últimos anos, que consegui entender e superar um pouco, mas foi bem difícil e tive até um quadro de depressão por conta disso”.

Ana Ferrari

Apesar de se identificar como “nerd” no colégio e ouvir o tempo todo dos amigos que era inteligente, esses fatores criaram em Ana uma sensação de que seu tempo de estudo não bastava para obter resultado.

Neste segundo ano de ensino médio, ainda distante dos vestibulares, a agora universitária teve uma crise de ansiedade durante uma prova. O episódio lhe fez procurar a terapia, onde foi diagnosticada com transtorno de ansiedade generalizada (TAG), e um tempo depois, após ler sobre o tema, também descobriu com a psicóloga que a síndrome da impostora era uma das consequências de seu quadro.

“Achei que tinha estudado pouco e o professor era severo, fiquei muito ansiosa. Tive que ir para a sala do coordenador e fazer a prova lá, até um pouco depois do tempo, porque não parava de chorar na sala de aula. Foi depois deste episódio que a gente – eu, minha mãe e o coordenador – decidimos que precisava fazer um tratamento para ansiedade. Agora já faz três anos. Tinha muito medo de não ir bem apesar de estar sempre estudando muito, é um sentimento que vinha muito forte”.


*(Créditos imagem de destaque: Chim, cuz.gallery e Mary Cassatt/The National Gallery of Art, Rawpixel).

Gabriela Sartorato e Laura Ferrazzano

Jornalistas concluindo a graduação através de um projeto sobre como a Síndrome da Impostora se manifesta na vida das mulheres.