Impostoras e Covid-19: a luta contra o vírus afeta profissionais da saúde

Em meio à devastação causada pelo coronavírus, desde março de 2020, os números atingiram patamares alarmantes. Nesse momento, médicos, enfermeiros e estudantes de medicina não têm descanso. “Minha saúde mental durante a pandemia foi pautada em altos e baixos. Acho que trabalhar nessa área já é algo que faz com que a nossa saúde mental seja sempre colocada à prova. Mas durante a pandemia isso ficou muito mais evidente”, conta a médica Jéssica Leão, profissional que está trabalhando na linha de frente desde o início da pandemia. 

A doutora, formada pela PUC-GO (Pontifícia Universidade Católica de Goiás), conta que, embora já fizesse acompanhamento profissional antes da Covid-19, precisou intensificar os cuidados com sua psicóloga. “É muito difícil, é muito sofrido. E realmente tem que ter terapia para conseguir lidar com o desmonte do SUS [Sistema Único de Saúde], com o caos que a gente encontra em toda a saúde pública ou privada. (…) Então é uma frustração atrás da outra, diariamente, mas eu acredito que não é só na saúde, eu acho que estarmos no Brasil hoje, em 2021, é um prato cheio para frustrações diárias.”, desabafa. 

Para lidar com a impotência e frustração, Jéssica encontrou uma forma de lidar com os sentimentos impostores – que com o caos no ápice da pandemia, só aumentaram. “Todos os dias eu acordo e penso que não sou tão boa. (…) Então é um trabalho de repetição diária, em que eu tenho que dizer várias vezes que eu sou suficiente, que eu sou capaz. É um esforço constante para continuar seguindo em frente.”.  

A plataforma SP Covid-19 Info Tracker foi criada por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp), com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). O objetivo é acompanhar a evolução da pandemia no estado de São Paulo. Os dados mostraram que em 1º de março de 2021, as unidades de terapia intensiva (UTIs) do estado tinham 7.281 internados com Covid-19. No dia 31, a ocupação chegava a 12.961, um aumento de 78% dentro do mesmo mês. 

Longas jornadas de trabalho, superlotações nas UTIs, carência de leitos e o pavor da falta de respiradores, medicamentos e insumos são algumas das preocupações diárias dos profissionais nessa área. “De repente não é mais o atendimento que é o fundamental, mas sim a necessidade de atender mais rápido, para atender mais pessoas.”, conta Jéssica.

(Fonte: Médicos e a Pandemia de Covid-19/Associação Médica Brasileira).

“É uma coisa que eu nunca tinha visto, não só dentro da medicina, mas acho que muita gente nunca tinha passado por isso. Eu não consigo nem explicar. Até falo que para entender a pandemia, as pessoas tinham que passar um dia dentro do CTI [Centro de Terapia Intensivo], só para poder entender a gravidade disso que a gente está vivendo.”, conta Julia Esteves de Moraes, aluna do 6º ano de medicina do Centro Universitário UNIFACIG (Faculdade de Ciências Gerenciais de Manhuaçu), em Minas Gerais.

A estudante, que faz plantões semanais no CTI de Manhuaçu, está trabalhando intensamente desde julho de 2020. “Eu comecei lá com o ‘Brasil Conta Comigo’, aquele estágio do governo. E aí, comecei recebendo dinheiro para estar lá. Só que em janeiro eles cortaram e a gente continua como voluntário. Basicamente, a gente faz de tudo. A única coisa que não fazemos é carimbar, porque ainda não temos um CRM [número que o profissional adquire após realizar a inscrição no Conselho Regional de Medicina]”. 

Julia, de 24 anos, conta que antes da pandemia sempre tinha sido a favor da terapia, mas sentia que não precisava. Com a pandemia, isso mudou. “Meu ápice foi no ano passado quando estava apresentando o meu TCC [trabalho de conclusão de curso]. Comecei a ficar muito ansiosa e teve um dia que eu acho que eu nunca vou esquecer, quando a gente perdeu um paciente no CTI. Ele tinha 18 anos, foi o primeiro paciente novo que a gente realmente perdeu por Covid-19. Ele estava bem, não tinha nada demais, até que de repente deu uma vasculite [inflamação da parede dos vasos sanguíneos] pelo corpo todo, principalmente no cérebro e ele morreu”, explicou ela, que agora faz acompanhamento semanal. 

As impostoras da área da saúde estão duplamente em risco

Por meio do estudo “Impostor syndrome and burnout among American medical students: a pilot study” (“Síndrome do impostor e burnout entre estudantes de medicina americanos: um estudo piloto”, em tradução livre), publicado em 2016 por Villwock JA, Sobin LB, Koester LA e Harris TM, os pesquisadores descobriram que as mulheres da área da saúde, além de estarem duas vezes mais vulneráveis à síndrome da impostora, também estavam 50% mais expostas aos principais sintomas para o desenvolvimento de burnout, apresentando altas taxas de propensão à exaustão (física e emocional) e despersonalização, isto é, a sensação persistente de observar a si mesmo de fora do corpo ou ter a sensação de que seus arredores não são reais. 

“Eu sou muito ansiosa. Acho que parte da minha ansiedade também é porque eu me esforço além do necessário para tentar provar pra mim que mereço, que eu tenho essa capacidade. (…) Na maioria das vezes [no trabalho] também fico me perguntando: ‘O que eu tô fazendo aqui?’. […] Tudo que eu faço, tenho que pensar trinta vezes para saber se está certo. Ou então, quando faço alguma coisa errada, fico ‘noiada’, imaginando que todo o resto também pode estar errado, sinto como se eu não tivesse capacidade de estar aqui”.

Julia Esteves de Moraes

A estudante, além de já ter sido confundida como enfermeira várias vezes, também relembra casos em que sofreu racismo dentro da faculdade. “Primeiro que na minha  faculdade, [temos] pouquíssimas [mulheres negras]. E a insegurança entra bastante na questão racial também, porque não temos ninguém como modelo, como espelho”, começa, contando que já sofreu preconceitos mais escancarados, principalmente com relação ao seu cabelo. 

“Eu estava com o meu cabelo trançado e um professor veio conversar comigo, falando que ele não estava achando legal eu estar com trança, que para ele tudo bem, mas que ‘algum paciente podia achar ruim’, que estava falando isso só como um conselho. Aham, claro”, disse ela.

Agora no sexto ano, Moraes se prepara para se formar em outubro e realizar mais uma prova em novembro, pela qual conseguirá ingressar na residência, um teste para quem deseja se especializar. “É tipo um outro vestibular.”, explica ela, relembrando momentos difíceis que passou antes de entrar na faculdade. “Fico pensando que não tenho condições de passar, que não sei porque estou gastando dinheiro estudando, eu não sei porque eu estou fazendo isso comigo, porque eu não vou passar nisso mesmo.”, desabafa. 

Mais de 12 horas por dia estudando: “Ainda sinto que foi apenas sorte”

Isabella Pimenta, também estudante de medicina do sexto ano, está se preparando para a prova de residência do Centro Universitário São Camilo. “Acho que tudo o que acontece comigo, a primeira coisa que eu sempre penso é: ‘Isso aconteceu porque eu sou uma pessoa muito sortuda. (…) E agora, estudando para a prova, eu também nunca acho que eu estou estudando o suficiente.”, conta. 

Isabella também diz que, quando precisa analisar a situação dos colegas, sempre entende e acha que eles fizeram o melhor. Quando o mesmo ocorre com ela, sua crítica é intensa. “Eu sempre acho que não estou fazendo tudo o que posso. Fico me comparando com os meus amigos da minha sala, sempre acho que eles estão estudando mais do que eu”, diz ela, que dedica aproximadamente 13 horas diárias para o aprendizado. 

Uma das teses presentes nos artigos da Dra. Clance e outros pesquisadores é de que a síndrome da impostora está diretamente relacionada à baixa autoestima, principalmente quando se trata dos âmbitos acadêmico e profissional. Para comprovar, muitos estudiosos do tema realizaram pesquisas com turmas de medicina, como a doutora Shohreh Ghorbanshirodi, que atua no departamento de psicologia da Universidade Islâmica de Azad, no Irã, onde desenvolveu a pesquisa “The relationship between self-esteem and emotional intelligence with imposter syndrome among medical students of Guilan and Heratsi Universities” (“A relação entre autoestima e inteligência emocional com síndrome do impostor nos estudantes de medicina nas universidades de Guilan e Heratsi”, em tradução livre). 

Segundo os resultados analisados pela Dra Ghorbanshirodi, é perceptível que o aumento da autoestima reduz a síndrome da impostora e vice-versa, ao passo que falhas são consideradas com maior ênfase, incentivando a autossabotagem. Entretanto, pessoas com esse fenômeno da mente acreditam que sua inteligência emocional é superior a de outras pessoas – o que, na prática, evidencia a crença das impostoras de que sua percepção é melhor do que a de seus avaliadores, principalmente quando o retorno é positivo.

Julia, por exemplo, espera que, ao contrário do que acredita, a opinião dos seus superiores esteja certa. “A equipe do CTI valoriza a gente. Quando acabou o estágio pelo Governo, meus chefes conversaram com o hospital e deram um jeito de abrir estágios extras pra gente continuar, porque eles falaram: ‘Não, vocês não podem sair! A gente não consegue mais fazer as coisas sem vocês’. Então, essa parte da valorização existe. Só não sei até que ponto eu acredito mesmo nisso”.


*(Créditos imagem de destaque: Benjamas, marinemynt, Chanikarn Thongsupa e PLOYPLOY, Rawpixel).

Gabriela Sartorato e Laura Ferrazzano

Jornalistas concluindo a graduação através de um projeto sobre como a Síndrome da Impostora se manifesta na vida das mulheres.