Você já teve a sensação de que se sua vida era uma mentira? Como se um dia acordasse e, de repente, todos os seus familiares, amigos e colegas de trabalho percebessem que, no fundo, você não passa de uma fraude que não merece suas conquistas?
Tal sentimento foi nomeado pela primeira vez há aproximadamente 42 anos atrás, em 1978, na Universidade do Estado da Geórgia, pelas pesquisadoras Pauline Rose Clance e Suzanne Imes. No artigo “The imposter phenomenon in high achieving women: dynamics and therapeutic intervention” (em tradução livre: “O fenômeno do impostor em mulheres de alto desempenho: dinâmica e intervenção terapêutica”), elas utilizaram o termo “Fenômeno do Impostor” logo após detectarem esses sinais que designam aqueles que demonstrava sinais de auto boicote. Apesar de não ser uma patologia, o quadro ficou popularizado em estudos internacionais como “síndrome do impostor” (S.I.), alcunha que é utilizada com frequência no feminino para reforçar a questão de gênero defendida pelas psicólogas.
Em diversas situações e ambientes patriarcais, é comum que mulheres, ao conquistarem certas posições sociais, experienciem uma sensação de impotência, como se tudo lhes fosse concedido por uma espécie de sorte ou casualidade misteriosa – e nunca por conta de mérito, esforço ou competência. No entanto, vale ressaltar que a Síndrome da Impostora, embora não se restrinja exclusivamente às mulheres, é, sim, mais frequente e incidente no sexo feminino (Robinson and Goodpaster, 2000; Thompson, 2004; Kumar e Jagacinski, 2006).
Não é uma patologia ou exclusividade de mulheres, mas…
A neuropsicóloga Keli Rodrigues explica que a síndrome não é uma doença propriamente dita. “É um sentimento, difícil de identificar, que envolve a forma como os outros nos veem e a maneira como o indivíduo percebe a si mesmo”, elucida. “A síndrome da impostora é um mecanismo psicológico caracterizado pela incapacidade de assimilar os próprios méritos e conquistas, principalmente pelo sentimento de inadequação”, enfatiza a doutora.
“As pessoas que sofrem da síndrome da impostora geralmente apresentam algumas das seguintes características: necessidade de se esforçar; procrastinar; autossabotagem; medo de exposição; comparação com os outros; baixa autoestima”, conta Rodrigues. A ansiedade generalizada também é um aspecto influente para as mulheres com S.I.
Ao descrever o fenômeno da ansiedade causado pelo sucesso no gênero feminino, Sasen (2006) afirma que as mulheres – pelos mais diversos motivos diretamente ligados às suas trajetórias familiares e profissionais – avaliam sua capacidade menos do que os homens. Rodrigues também adiciona que, como a Síndrome da Impostora é uma desordem de autopercepção, a origem dessas crenças varia. “Podem ser por fatores socioemocionais desenvolvidos desde a infância.”.
Raisi e Salehi (1989) também identificaram a Síndrome da Impostora como um conjunto de sentimentos de inadequação ligado a sintomas psicológicos, como ansiedade alta e permanente, baixa autoestima, complexo de inferioridade e auto conceito negativo. A Dra. Pauline Rose Clance também desenvolveu uma escala para utilizar de apoio na análise dos pacientes, a Clance Impostor Phenomenon Scale (CIPS), um sistema de pontos que auxilia profissionais da saúde (lembrando que esses resultados não constituem um diagnóstico oficial sem uma avaliação psicológica em conjunto).
“Na minha opinião, a síndrome da impostora com o sexo feminino se dá primeiro pela comparação com outras mulheres, seguida pela comparação com homens na mesma posição – que é um dos fatores de possível desencadeamento da síndrome – e ainda pela maior exposição das mulheres com relação ao que sentem, o que ocorre com menor frequência entre os homens.”
Keli Rodrigues
Os estudos de Cozzarelli, Mijor (2005), Longford e Clans (1993), bem como Taping Kimel (1985) também evidenciam que não há diferenças concretas na pontuação do CIPS entre os gêneros, visto que os homens também podem encontrar barreiras ao progresso, mas fica nítido que a forma de como ela afeta os dois sexos é bem desigual.
“Na minha experiência de prática clínica é muito comum que os pacientes que chegam a se permitir passar por um processo terapêutico tragam essa angústia, inclusive homens. No entanto, eles têm mais dificuldade de falar sobre suas fraquezas em comparação com as mulheres.”, continua Rodrigues. “Desse modo, parece que ela [a Síndrome da Impostora] se manifesta mais no sexo feminino, mas não creio que seja totalmente verdade, isso com base na minha experiência com atendimento do público masculino e a recorrência em que essa síndrome aparece no discurso deles, muitas vezes, inclusive, esse discurso ou é velado ou demora a se revelar.”, contra argumenta a doutora.
Contudo, existem fatores sociais que, somados a aspectos subjetivos, também favorecem a vulnerabilidade feminina. Em suas pesquisas com o público, Gilligan (1982) evidenciou que as mulheres apresentam medo do sucesso e, inclusive, tendem a evitá-lo. Também estudando a concepção de triunfo, Young (2003) conversou com mulheres acerca de suas interpretações sobre sucesso, obtendo uma característica, ligada à síndrome da impostora: a Síndrome de Blanche Dubois, na qual mulheres impostoras atribuem seu sucesso à gentileza de estranhos.
A Síndrome da Impostora é igual para todas as mulheres?
Daniela Arrais, jornalista e uma das sócias da Contente.vc – plataforma de conteúdo e mídia para uma vida digital mais consciente – fala que, quando descobriu que seus sentimentos tinham um nome, teve vontade de contar para o mundo. “Depois que você entende que aquilo ali não é uma coisa pessoal, mas sim uma coisa coletiva, ajuda muito. Então, quando eu me dei conta disso, eu comecei a escrever sobre. (…) Para que mais e mais mulheres entendam que elas não estão sozinhas e que elas têm muito a contribuir com o mundo”, conta.
Arrais, contudo, opina que embora a síndrome pareça um assunto em alta, ainda é algo restrito a uma parcela da população. “Eu imagino que (…) as [mulheres] que estão pensando sobre isso, são mulheres que têm um trabalho e uma situação econômica mais estabelecida. Eu acho que é impossível falar de síndrome da impostora sem fazer um recorte de classe, sem fazer um recorte de que mulheres negras, por exemplo, sofrem muito mais as consequências de uma síndrome da impostora do que uma mulher branca.”, argumenta a jornalista.
A profissional, que já ministrou diversas rodas de conversa sobre o tema, afirma que algumas falas já a sensibilizaram, fazendo com que ela entendesse ainda mais a magnitude do impacto da síndrome.
“Um dia, uma delas falou assim: ‘Cheguei em um cargo de liderança na agência de publicidade que trabalho. Não posso errar, porque se eu errar, eu tô fechando portas para outras mulheres negras’. Então, imagina você ter essa pressão de dar certo por todas as mulheres negras que querem acessar esse tipo de lugar?”, questiona. “A gente precisa parar de tratar como individual e entender que é uma questão coletiva. (…) Eu acho que com essa visão conseguiremos falar de uma forma mais ampla.”, declara.
Arrais ainda finaliza dizendo ser essencial que a sociedade continue estudando e entendendo mais sobre o assunto. “É muito importante disseminar esse tema, porque a partir do momento em que a gente toma conhecimento de uma questão, temos força e argumento para mudar um pouco aquela realidade.”.
Até onde a síndrome da impostora pode levar?
Todos esses sintomas juntos, em consonância com a desigualdade de gênero – que pode se apresentar em praticamente todos os âmbitos sociais – não é apenas algo psicológico. Pelo contrário, a sensação de insuficiência e não pertencimento também podem levar à exaustão excessiva que, junto de altos níveis de ansiedade, estresse e depressão, faz com que mulheres desenvolvam quadros de burnout.
O termo, cunhado pelo psicanalista americano Herbert Freudenberger em 1974, é usado, majoritariamente, para descrever uma série de sintomas de esgotamento máximo – sempre ligados ao ambiente profissional. Além disso, embora o burnout tenha entrado apenas em 2019 na Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS) – decisão que será oficializada em janeiro de 2022 – o prognóstico é alarmante. Em um artigo publicado em fevereiro de 2019 no New York Times, Sheryl Sandberg, diretora do Facebook, e Adam Grant, professor de administração da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, analisaram que, em um grupo de mil profissionais com burnout, cerca de 54% serão do gênero feminino.
No que diz respeito a tratamentos, Rodrigues explica que, primeiramente, só existe a possibilidade de tratar algo quando primeiro existe a consciência e a identificação da síndrome. “Em seguida, é necessário desenvolver estratégias para redirecionar a percepção para nossa própria história sem comparações.”, pontua.
“Aceitar que não vai passar de um dia para o outro, é um processo, porém se comprometer a mudar hábitos e adquirir novos; reconhecer e admitir os pontos fortes, validar sua trajetória usando os feedbacks, combater a exigência da perfeição e aceitar sua vulnerabilidade sem julgá-las; partilhar suas inseguranças e descobrir que existem muitas outras pessoas que têm as mesmas ou outras dúvidas; expor suas realizações com os amigos e familiares: todos esses movimentos descritos acima, são mais fáceis quando conduzidos juntamente com um profissional e em um processo sério de psicoterapia.”, finaliza.